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sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A Chinela Turca - um conto de Machado de Assis (parte 4)


Os bronzes, charões, tapetes, espelhos, - a cópia infinita de objetos que enchiam a sala, era
tudo da melhor fábrica. A vista daquilo restituiu a serenidade de ânimo ao bacharel; não era
provável que ali morassem ladrões.
Reclinou-se o moço indolentemente na otomana... Na otomana! Esta circunstância trouxe à
memória do rapaz o principio da aventura e o roubo da chinela. Alguns minutos de reflexão
bastaram para ver que a tal chinela era já agora mais que problemática. Cavando mais
fundo no terreno das conjeturas, pareceu-lhe achar uma explicação nova e definitiva. A
chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília, que ele roubara, delito
de que o queria punir o já imaginado rival. A isto deviam ligar-se naturalmente as palavras
misteriosas do homem magro: o par é melhor que o terno; um casal é o ideal.
- Há de ser isto, concluiu Duarte; mas quem será esse pretendente derrotado?
Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina de um padre alvo e
calvo. Duarte levantou-se, como por efeito de uma mola. O padre atravessou lentamente a
sala, ao passar por ele deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra porta rasgada na parede
fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para a porta, a olhar sem ver, estúpido
de todos os sentidos. O inesperado daquela aparição baralhou totalmente as idéias
anteriores a respeito da aventura. Não teve tempo, entretanto, de cogitar alguma nova
explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por ela outra figura, desta
vez o homem magro, que foi direito a ele e o convidou a segui-lo. Duarte não opôs
resistência. Saíram por uma terceira porta, e, atravessados alguns corredores mais ou menos
alumiados, foram dar a outra sala, que só o era por duas velas postas em castiçais de prata.
Os castiçais estavam sobre uma mesa larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que
representava ter cinqüenta e cinco anos; era uma figura atlética, farta de cabelos na cabeça e
na cara.
- Conhece-me? perguntou o velho, logo que Duarte entrou na sala.
- Não, senhor.
- Nem é preciso. O que vamos fazer exclui absolutamente a necessidade de qualquer
apresentação. Saberá em primeiro lugar que o roubo da chinela foi um simples pretexto...
- Oh! decerto! interrompeu Duarte.
- Um simples pretexto, continuou o velho, para trazê-lo a esta nossa casa. A chinela não foi
roubada; nunca saiu das mãos da dona. João Rufino, vá buscar a chinela.
O homem magro saiu, e o velho declarou ao bacharel que a famosa chinela não tinha
nenhum diamante, nem fora comprada a nenhum judeu do Egito; era, porém, turca,
segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez. Duarte ouviu as explicações, e, reunindo
todas as forças, perguntou resolutamente:
- Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que querem de mim e o que estou fazendo nesta
casa?
- Vai sabê-lo, respondeu tranqüilamente o velho.
A porta abriu-se e apareceu o homem magro com a chinela na mão. Duarte, convidado a
aproximar-se da luz, teve ocasião de verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A
chinela era de marroquim finíssimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul,
rutilavam duas letras bordadas a ouro.
- Chinela de criança, não lhe parece? disse o velho.
- Suponho que sim.
- Pois supõe mal; é chinela de moça.
- Será; nada tenho com isso.
- Perdão! Tem muito, porque vai casar com a dona.
- Casar! exclamou Duarte.
- Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela.
Saiu o homem magro, e voltou logo depois. Assomando à porta, levantou o reposteiro e deu
entrada a uma mulher, que caminhou para o centro da sala. Não era mulher, era uma sílfide,
uma visão de poeta, uma criatura divina.
Era loura; tinha os olhos azuis, como os de Cecília, extáticos, uns olhos que buscavam o
céu ou pareciam viver dele. Os cabelos, deleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da
cabeça um como resplendor de santa; santa somente, não mártir, porque o sorriso que lhe
desabrochava os lábios, era um sorriso de bem-aventurança, como raras vezes há de ter tido
a terra.
Um vestido branco, de finíssima cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo, cujas formas
aliás desenhava, pouco para os olhos, mas muito para a imaginação.
Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegância, ainda em lances
daqueles. Duarte, ao ver a moça, compôs o chambre, apalpou a gravata e fez uma
cerimoniosa cortesia, a que ela correspondeu com tamanha gentileza e graça, que a
aventura começou a parecer muito menos aterradora.
- Meu caro doutor, esta é a noiva.
A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar.
- Três coisas vai o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente o velho: a
primeira, é casar; a segunda, escrever o seu testamento; a terceira engolir droga do
Levante...
- Veneno! interrompeu Duarte.
- Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu.
Duarte estava pálido e frio. Quis falar, não pôde; um gemido, sequer, não lhe saiu do peito.
Rolaria ao chão, se não houvesse ali perto uma cadeira em que se deixou cair.
- O senhor, continuou o velho, tem uma fortunazinha de cento e cinqüenta contos. Esta
pérola será a sua herdeira universal.
João Rufino, vá buscar o padre.
O padre entrou, o mesmo padre calvo que abençoara o bacharel pouco antes; entrou e foi
direto ao moço, engrolando sonolentamente um trecho de Neemias ou qualquer outro
profeta menor; travou-lhe da mão e disse:
- Levante-se!
- Não! Não quero! Não me casarei!
- E isto? disse da mesa o velho, apontando-lhe uma pistola.
- Mas então é um assassinato?
- É; a diferença está no gênero de morte: ou violenta com isto, ou suave com a droga.
Escolha!
Duarte suava e tremia. Quis levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam um contra o outro. O
padre chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho:
- Quer fugir?
- Oh! Sim! exclamou, não com os lábios, que podia ser ouvido, mas com os olhos em que
pôs toda a vida que lhe restava.
- Vê aquela janela? Está aberta; embaixo fica um jardim. Atire-se dali sem medo.
- Oh! Padre! disse baixinho o bacharel.
- Não sou padre, sou tenente do exército. Não diga nada.
A janela estava apenas cerrada; via-se pela fresta uma nesga do céu, já meio claro. Duarte
não hesitou, coligiu todas as forças, deu um pulo do lugar onde estava e atirou-se a Deus
misericórdia por ali abaixo. Não era grande altura, a queda foi pequena; ergueu-se o moço
rapidamente, mas o homem gordo, que estava no jardim, tomou-lhe o passo.
- Que é isso? perguntou ele rindo.
Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu com eles violentamente nos peitos do
homem e deitou a correr pelo jardim fora. O homem não caiu; sentiu apenas um grande
abalo; e, uma vez passada a impressão, seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma
carreira vertiginosa. Duarte ia saltando cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando
árvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-lhe o suor em bica,
alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco; tinha uma das mãos feridas,
a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes esteve a ponto de ser apanhado, o
chambre pegara-se-lhe em uma cerca de espinhos. Enfim, cansado, ferido, ofegante, caiu
nos degraus de pedra de uma casa, que havia no meio do último jardim que atravessara.
Olhou para trás; não viu ninguém, o perseguidor não o acompanhara até ali. Podia vir,
entretanto; Duarte ergueu-se a custo, subiu os quatro degraus que lhe faltavam, e entrou na
casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena e baixa.
Um homem que ali estava, lendo um número do Jornal do Comércio, pareceu não o ter
visto entrar. Duarte caiu numa cadeira. Fitou os olhos no homem. Era o major Lopo Alves.
O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas,
exclamou repentinamente:
- Anjo do céu, estás vingado! Fim do último quadro.
Duarte olhou para ele, para a mesa, para as paredes, esfregou os olhos, respirou à larga.
- Então! Que tal lhe pareceu?
- Ah! excelente! Respondeu o bacharel, levantando-se.
- Paixões fortes, não?
- Fortíssimas. Que horas são?
- Deram duas agora mesmo.


Duarte acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à
janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto de
hora, eis o que ele dizia consigo: - Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me
salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo:
foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o
melhor drama está no espectador e não no palco.

FIM


Fonte:
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html)

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