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sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A Igreja do Diabo - Um conto de Machado de Assis - Capítulo III


CAPÍTULO III - A BOA NOVA AOS HOMENS

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa  em enfiar a
cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou  a espalhar uma doutrina nova
e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia
aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais
íntimos.
Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os
homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas
beatas.
   — Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos
soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da
natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens.
Vede-me gentil a airoso. Sou  o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele
nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos
darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
   Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os
indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si.
E elas vieram; e logo que vieram, o  Diabo passou a definir a doutrina. A
doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à
substância, porque, acerca da forma, era umas vezes subtil, outras cínica  e
deslavada.
   Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que
eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e

assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia,
com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a
melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a
Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula,
que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope;
virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas
ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões
de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude,
quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em
grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o
Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do
Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das
mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude
principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir
todas  as outras, e ao próprio talento.
   As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes
golpes de eloqüência, toda a nova ordem de cousas, trocando a noção delas,
fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
   Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude.
Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía:
muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem
canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a
todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e
profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era
um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito
superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o
teu chapéu, cousas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em  todo
caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua
palavra, a tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são a tua própria
consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois
não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte
do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos,
partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do
homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as
vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do
preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que
era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer
duplicadamente.
   E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que
combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não
proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição,
ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma
expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum
salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito
foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro
social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma
exceção foi logo eliminada. pela consideração de que o interesse, convertendo o
respeito em simples adulação, era este o  sentimento aplicado e não aquele.
   Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a
solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à

nova instituição. Ele mostrou que essa  regra era urna simples invenção de parasitas
e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em
alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que  a
noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele
fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve
a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao
próximo era  quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie
de amor tinha a particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do
indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem  que uma tal explicação,
por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um
apólogo:
— Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas
cada acionista  não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece
aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.


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